Tornar-se professora – Uma pedagogia dentro fora da escola

Em uma escola primária, na aldeia Shuiquan, zona rural da China, professor Gao precisa se afastar por um mês das suas atividades. Uma professora substituta ficará com a turma no período. Mas ao recepcionar a substituta recrutada pelo prefeito, o experiente professor logo desconfia das suas capacidades. Com treze anos e sem ter terminado o ginásio, professor Gao não acredita que Wei reúna as condições necessárias para lecionar na turma multisseriada (alunos da pré-escola à 3ª série) que receberá. Quando pergunta o que ela saber fazer, sua resposta é: “cantar”. Quando tenta demonstrar a única canção que sabe, não consegue fazer direito. Gao pergunta, então, se ela “sabe copiar lições”. Wei responde afirmativamente. Sem alternativa, Gao faz uma recomendação que ela deverá, no entanto, prioritariamente observar: “nenhum a menos”. Com a evasão que frequentemente diminui o número de alunos da turma, professor Gao é enfático na necessidade de impedir que mais um aluno, dos atuais vinte e oito, seja perdido. Diante das dificuldades já sentidas que terá a professora Wei de ensinar, existe, então, a declaração da meta em que ela não poderá falhar: “nenhum a menos”.
Wei inicia seu trabalho com a turma de forma tímida e vacilante. Sequer é reconhecida como “professora” por todos. Nem por ela mesma, parece. Quando o prefeito chega à escola, após a partida do professor, para apresentar a professora substituta para a turma, encontra Wei sentada na entrada da sala de aula, enquanto seus alunos brincam no terreno diante do prédio. Ele repreende: “Por que está sentada aí? (…) E a aula? Você está aqui para ensinar!” O prefeito chama os alunos e entra na sala. Chama também a professora: “Professora Wei, entre. Entre! Você é a professora, entre! Entre de uma vez!”. Wei fica na porta, sem jeito para entrar, vacilante sobre o que fazer. Passados 15’ de filme, o que assistimos é uma jovem tornada professora substituta em uma escola onde se espera dela os supostos saberes e posturas que a fazem “professora”, enquanto ela mesma parece distante das exigências institucionais – atenta apenas ao pagamento prometido, que ela deseja ver garantido.
Zhang Huike
Quando o prefeito apresenta a professora substituta à turma, pede aos alunos: “digam professora Wei”. Um dos alunos, Zhang Huike, recusa-se a chamá-la de professora, afirmando que “ela é só a irmã de Wei Chunzhi”. O menino continuará desafiando a competência da professora substituta. Uma colega reclama que Zhang Huike está fazendo bagunça e Wei apenas diz, “não posso fazer nada”. A menina reclama: “Mas você é a professora”. O diálogo continua, com a professora reafirmando não poder “fazer nada” e a menina insiste que deveria saber fazer porque é a “professora”. Então, primeiro pelo professor Gao, depois pela turma, as capacidades de Wei e a sua própria identidade como professora são questionadas. Inclusive, não há aparentemente qualquer gesto seu de afirmação, de superação.
Zhang Huike, em outro gesto de desobediência, sai correndo da sala de aula e a professora Wei o persegue. Quando consegue alcançá-lo, ele diz que precisa “fazer xixi”.

Em Nenhum a menos, “escapar da professora” será abordado em uma dimensão mais trágica do que os frequentes “dribles” da sala de aula.
Logo o especial pedido do Professor Gao – “nenhum a menos” – será posto à prova. Dois homens procuram por uma menina, aluna da escola, que corre 10 km diariamente. Com apoio do prefeito, ela será transferida para outra escola, onde poderá treinar e virar atleta. Wei simplesmente esconde a garota, para não ver a turma diminuir. Não consegue. Ao ver a menina partir em um carro, corre atrás. Todos no veículo ficam impressionados com a tenacidade da professora substituta. Diante da obsessão de Wei, comenta o prefeito: “Hoje manter as crianças na escola é mais difícil do que ensinar”. Fala que abre uma perspectiva de discussão sobre o próprio imperativo do “ensino” e de ser “professora”, como realizações sumárias, absolutas. Existe um continente muito amplo de vida (e imagens) que não pode ser resumido à “sala de aula”, que precisa ser levado em conta, visto. É o que vai acontecer no filme, com uma impactante mudança de cenário.
No planeta que é escola da aldeia, todos os acontecimentos graves parecem provocados especialmente pela presença agitada de Zhang Huike. Agora é a vez de vermos Zhang Huike girar no universo agitado da cidade.
Em uma manhã, ao realizar a chamada, Wei é informada da ausência de Zhang Huike: “seus pais o levaram embora”. Wei vai, então, até sua casa e descobre que o garoto foi para a cidade, com crianças de outras aldeias, para procurar trabalho, com a família endividada, vivendo precariamente.
O que poderá fazer a professora Wei para não perder seu aluno?
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A aventura pedagógica |
Wei procura o prefeito,
pedindo ajuda para trazer novamente Zhang Huike para a escola. Escuta sobre as
impossibilidades, sobre a falta de dinheiro e que deveria deixar isso de lado.
É, então, na sala de aula que a professora discutirá com seus alunos como
deverá fazer para conseguir ir até a cidade, atrás de Zhang Huike. Conversam
sobre o preço da passagem e o necessário para ir e voltar. Pela primeira vez
Wei deixa de copiar as lições no quadro ou propor canções monótonas para seus
alunos e acontece uma participação criativa, pensante e prática a respeito de
um problema. Contas são feitas e os resultados checados, revistos, avaliados.
Aos 40’ do filme, Wei agora é “professora”. A turma está envolvida e ela no
comando, perguntando, analisando. É o interesse pelo retorno – pela existência
– de Zhang Huike que provoca essa chacoalhada no seu ensino. Competências:
algumas Wei já possuía. As tessituras de conhecimentos em rede já eram
elaboradas por ela. Faltava vê-los melhor em ação.
Uma menina na turma
conta sobre uma olaria próxima que remunera pelo trabalho de carregar tijolos.
Wei decide, então, levar a turma, com a finalidade de arrecadar o dinheiro
necessário. Há uma inegável ingenuidade na atitude de Wei. Mas não importa, não
são as carências da professora substituta que devem ser vistas, mas sua
vontade. O trabalho solidário com seus alunos não tem o resultado exatamente
esperado, mas o chefe no local resolve apoiar a iniciativa da professora, com o
valor que Wei diz precisar. Seu empenho, para conseguir o dinheiro para o
retorno de Zhang Huike, já pode ser visto também como “educação”, o que parecia
não ser capaz de realizar. Ao levar a turma para trabalhar na olaria, ao sair
da sala de aula, suas articulações com as crianças aumentam, assim como as
possibilidades do seu ensino. Novas situações se desdobram em episódios
originais, em novas vivências e aprendizagens – que a própria realidade do
cinema abre como pedagogia da imagem para quem assiste também.
Duas latinhas de coca-cola
Wei
e seus alunos entram em um estabelecimento comercial. Lá resolvem beber
coca-cola. Pelos cálculos de Wei (cálculos equivocados, vamos ver depois), é
possível comprar duas latinhas do refrigerante. “É pouco pra todo mundo/ Cada
um toma um golinho/(…) Deixem a professora tomar”. Há uma cena, entre as
primeiras com a professora Wei em sala de aula, em que todos os alunos parecem
dispersos, cada um envolvido apenas em sua própria ação de evasão da escola.
Agora, bem o contrário, a latinha de coca-cola corre de mão em mão. E alguém
pede para a professora não ser esquecida. A atenção está relacionada a um
interesse comum: nenhum a menos. Wei é contratada
como professora substituta em troca de um pagamento que constitui sua grande
preocupação no início. Sua relação com a turma reelabora seu interesse pelo
dinheiro. No começo do filme ela corre atrás da garantia que seu trabalho será
remunerado. Depois, passa a perseguir o dinheiro para trazer Zhang Huike de
volta. Com a suposta sobra de dinheiro, ele servirá para uma partilha: duas
latas de coca-cola para todos.

“Professora Wei”
Ao chegar à estação
de trem, Wei descobre que não tem o dinheiro suficiente para a passagem.
Precisa de muito mais. Volta para a sala de aula. Diante da questão que precisa
ser examinada e ações cometidas, a sala de aula da professora substituta é
lugar de discussão, tessitura de conhecimentos e de solidariedades, sem as
quais não existe “ensino” ou “educação”. O prefeito olha pela janela da classe
e diz: “Essa substituta não é ruim. Ensina até matemática”. Embora “sem
recursos”, a escola da aldeia tem potências, que são animadas na tela do cinema
e na fantasia de quem assiste. É a potência do cinema também pensando a escola.
A determinação de Wei, com a mensagem “nenhum a menos” na sua cabeça, não é
mais a sua obstinação pessoal do início do filme. Ocorreu um deslocamento. Na
sala de aula, transformou-se em uma vontade partilhada, com atitudes éticas
instituídas no grupo. Uma menina propõe que Wei entre no ônibus sem pagar. “E
se me pegarem?”. Recebe como resposta: “Não vão pegar! A gente vai com você”.
Pegam, sim. Mas se não está sozinha, seguirá pela estrada, até que uma carona a
deixe na cidade.
A cidade é um
deserto para Zhang Huike e a professora Wei. Contam, aqui e ali, com a atenção
e o cuidado providencial de alguma pessoa que não fica indiferente à presença
deslocada dos dois. Wei é entrevistada em um programa de televisão chamado
“China Hoje”, com a esperança de que, ao dirigir-se a um público muito amplo,
poderia ter a sua mensagem escutada por Zhang Huike: “Onde você está? Já
procurei em todo o lugar. Estou tão preocupada! Por que você não volta?”. Wei
chora copiosamente, enquanto olha para a câmera. Em uma transmissão do programa
Zhang Huike é reconhecido. Ao ouvir sua professora, também se comove e chora.
Nem sempre são as palavras que vão representar o comum, entre aqueles que,
juntos, aprendem e ensinam. O repertório humano da educação é muito maior que
seus objetos e suas práticas classificadas como pedagógicos. Aqui, no encontro
entre Wei e Zhang Huike, proporcionado pela comunicação e a tecnologia, é
através das lágrimas que virtualmente se tocam. Para a dedicada e delicada
procura de Wei por Zhang Huike não existe limite. E o coração do menino arredio
também é um enorme mar navegável. Não é apenas o “mar revoltoso” que no início
do filme parecia impedir o contato entre eles.
O mesmo programa de televisão que colaborou com a professora Wei para
que Zhang Huike fosse encontrado faz uma reportagem sobre o retorno de ambos
para a aldeia. Um veículo da emissora faz a viagem e nele o menino é
entrevistado. “Você gostou da cidade?”. Ele responde: “Sim”. “O que ela tem de
bom?” “A cidade é bonita e próspera. Muito melhor do que o campo”, diz Zhang
Huike. A entrevistadora prossegue: “O que mais impressionou você?”. A imagem do
seu rosto parece refletir as dificuldades vividas e, então, responde: “Que tive
de mendigar comida. Sempre vou me lembrar disso”. Sua resposta encerra uma
ambivalência de quem se impressionou com o brilho da cidade, mas conheceu o
contraste da luz. Conhecimentos não são linhas retas. O “aprender” acontece
através de variantes que uma concepção dura do que é o ensino procura, muitas
vezes, evitar. No entanto, dentrofora[1] da escola costumamos vacilar com os
nossos saberes, provisórios que são. O que não significa dizer que uma
indeterminação sempre perdura, que a educação “não chega a lugar algum”. Wei
trouxe Zhang Huike de volta. Na última cena do filme, alunos e a professora
substituta estão na sala de aula e cada um deverá escrever uma palavra no
quadro. Zhang Huike, com sua audácia característica, pergunta se pode escrever
duas. Ele escreve: “Professora Wei”. A professora substituta não é “professora”
porque o prefeito disse, mas porque ela “sabe”.

Aguardando Referencia.
Midiã
Pamela ficou ótimo.
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